A pacata cidade do interior
acordava lentamente com o nascer do Sol. A densa neblina que encobria as
construções aos poucos subia pelos ares do vale, em direção às colinas ao redor.
O clima aprazível dava àqueles que abriam os olhos a certeza de um dia bom. Os
pássaros cantarolavam felizes, uns em busca de comida, outros de materiais para
fazer seus ninhos. A vida era boa no interior.
Assim também pensava Adriano
quando abriu os olhos. Olhou para o relógio analógico preso na parede no outro
lado do pequeno quarto. Dez horas da manhã, tinha que se apressar. Na noite
passada veio a informação, uma jovem criança de apenas seis anos morrera de
pneumonia, hoje seria o enterro, tinha que deixar tudo muito bem preparado.
Adriano era já um senhor de 50
anos de idade, mas ele não gostava de ser chamado de senhor, menos ainda de
coveiro, como se sua profissão definisse quem ele era. Quando pensava nisso sua
mente divagava e não conseguia se lembrar de qualquer outro trabalho que tivera
na vida. Talvez tenha nascido para ser coveiro, talvez isso fosse sua missão
nessa vida, preparar tudo para que um corpo sem alma deitasse a sete palmos
para o sono eterno, talvez isso o definisse.
Levantou, lavou o rosto na
pequena pia que ficava no próprio quarto. Olhou para o minúsculo espelho que
estava pendurado a frente. As marcas do tempo são inexoráveis. Realmente estava
velho, porém nunca abatido. O povo de São Tomás dizia que ele estava sempre
bem, o corpo forte, talvez por uma vida de esforços, o abdômen era duro, diziam
os amigos do bar. Ah o bar! Não havia lugar que Adriano mais gostava, não havia
nada mais gostoso do que trancar os portões do cemitério, após o expediente, e
ir para o bar bebericar uma boa cachaça.
Foi tomar café. No bule um café
aguado de três dias, não importava, tomava-o frio mesmo. No saco de pão, apenas
um pão francês duro – em São Tomás era chamado de filão -, mas não importava,
comia-o assim mesmo, seco, sem nada. Eram onze horas da manhã quando saiu de
sua pequena casa de três cômodos, que ficava no fundo do cemitério, tinha que
cavar a cova para o anjo morto.
O Sol já estava bem alto, seu
calor fazia o coveiro suar dentro daquele macacão puído, todo sujo de terra pútrida,
as mãos já calejadas não se incomodavam com a aspereza do cabo da pá. Adriano
riu sozinho com seus pensamentos, era engraçado como em algumas cidades o
coveiro não cavava, não ele próprio, manobrava uma pequena escavadeira que
fazia o trabalho em minutos. Mas não em São Tomás, ali o tempo parou, mas
Adriano achava que isso era o certo, máquinas num enterro retiravam todo
sentimento humano pela perda de alguém. Sorriu novamente, dessa vez quase uma
gargalhada, ele não tinha sentimentos humanos por aqueles perdidos que
enterrava, na verdade quanto mais mortos, mais ele ganhava.
Já no início da tarde ele
terminara a cova. Estava perfeita, milimetricamente retangular. Os anos de
prática haviam ensinado a ele a melhor maneira de cavar uma cova. Devia dar
aulas aos coveiros de outras cidades. Um sentimento cresceu dentro de si, vinha
do meio do corpo, um pouco acima do estômago, sua boca ficou um pouco seca.
Talvez sede? Não, Adriano não bebia água, mas era sede que sentia, sede de álcool.
Iria até o bar que ficava no fim da rua, de lá também poderia fazer a ligação que
lhe renderia um dinheirinho extra.
Da porta do bar viu o Seu
Joaquim colocar um copo americano sobre o balcão, abrir uma garrafa e despejar
seu conteúdo no copo, até quase transbordar. A boca de Adriano chegava a
salivar. Era por isso que sempre acreditou que cada um deve escolher um bar
durante toda a vida. O freguês era tratado da melhor maneira possível assim,
pois o dono do estabelecimento já saberia de seus gostos. Seu Joaquim sabia
qual a cachaça que o coveiro iria pedir, por isso se adiantou. Agradeceu pelo
néctar que estava bebendo.
O coveiro bebia para tentar
tornar menos dolorido o seu próximo movimento. Já fazia tempos que fazia
aquilo, não se lembrava de quanto, porém havia muito tempo. Sempre antes de dar
o telefonema bebia um pouco, após o serviço bebia bastante. Assim foi sua vida,
alguns diziam que era alcoólatra, mas era besteira. Em seu íntimo Adriano sabia
que bebia para tentar viver consigo mesmo, para olhar no espelho e não sentir
nojo do homem que se tornou. Dane-se! Vou telefonar.
Pediu uma ficha ao Seu Joaquim.
Foi ao orelhão que ficava em frente ao bar. Ficou sob a cúpula que protegia o
aparelho. Discou o número já memorizado de tanto ligar. Dois toques e a pessoa
atendeu.
- Hoje tem enterro – disse o
coveiro sem se apresentar. Havia percebido que a pessoa do outro lado da linha
sempre sabia que era ele quando ligava, então passou a não se importar mais em
dizer quem falava.
- Tudo bem, o mesmo combinado
de sempre!? – disse a voz feminina do outro lado. Embora fizesse tempos que
Adriano tratava com ela, sua voz nunca mudara, permanecia estranhamente jovem e
sensual, fazia com que seu membro desse sinal de vida.
- Tá, pode ser, no mesmo
horário e mesmo lugar?
- Isso meu querido, o mesmo
combinado de sempre! – ela deu ênfase na última parte, fazendo o coveiro
perceber que o combinado de sempre se referia ao lugar, ao horário e ao valor.
Sem dizer mais nada a mulher desligou.
Adriano se despediu de Seu
Joaquim, apenas por hora, pois voltaria mais tarde para o seu ritual de beber
até cair. Foi para o cemitério, logo a procissão de parentes, conhecidos e
amigos do anjo morto chegariam aos prantos para enterrar sua preciosidade. Ele
precisava estar preparado.
Eram quatro horas quando o
carro fúnebre entrou no cemitério, alguns outros carros o acompanhavam, porém a
maior parte das pessoas veio caminhando lentamente. O carro parou a certa
distância da cova, Adriano estava parado como uma estátua. Segurava sua pá
entre as duas mãos na frente do corpo como se rezasse. A porta traseira do carro
se abriu e lá estava o caixão pequeno e brilhante da criança morta. Alguns
homens foram até lá e o carregaram, o show começara.
Adriano ficou em seu local de
praxe, meio afastado, mas não muito para poder ouvir tudo que falavam ao redor
do futuro túmulo. Os homens colocaram o caixão na tábua que ficava ao lado da
cova e servia de apoio para preparar sua descida. O coveiro se aproximou e
enquanto o padre fazia seu pequeno discurso, Adriano posicionou as tiras de
couro para que o caixão pudesse ser colocado adequadamente em seu lugar
natural. Esse momento era sempre tenso, o erro de alguém poderia fazer o caixão
despencar, virar, balançar, causando desconforto nos presentes.
Findo a oração, quatro homens,
talvez parentes da criança, pegaram as tiras e começaram a descer o caixão na
cova. É sempre um momento dolorido para os parentes, pois cresce a sensação de
perda. O choro fica mais forte, alguns berram, alguns perdem as forças e as
pernas se dobram, os outros seguram e esperam que aquilo acabe logo. Com o
caixão já posicionado, alguns dos presentes atiram flores, outros um punhado de
terra, mas os pais da criança derramam apenas lágrimas.
Adriano espera o fim do
espetáculo com ansiedade. Gostava quando as pessoas logo davam as costas, mas
parecia que hoje seria diferente, pois algumas pessoas, com certeza as mais
próximas da criança e dos pais, ficaram além do desejado. Ele teve que começar
a cobrir a cova na presença deles e isso o deixava irritado. Irritado porque
depois teria que tirar toda essa terra novamente. Somente quando a cova estava
na metade é que todos foram embora, o coveiro sentiu-se aliviado. Largou a pá e
foi até o ossuário. Voltou com um saco cheio de ossos. E recomeçou seu
trabalho, mas agora retirando a terra da cova.
O Sol já estava baixo quando
Adriano abriu o caixão. Apenas as pontas das colinas estavam luminosas ainda.
Era um rapazinho loiro, devia ter olhos claros, mas Adriano não ficou curioso
aponto de abrir seus olhos. Estava com um pequeno terno, feito sob medida,
talvez em nenhum outro momento de sua breve vida tenha se vestido tão bem.
Adriano posicionou suas mãos por baixo das axilas do menino e o levantou, era
leve até. Em seguida o tirou da cova com certa facilidade. Tentava não pensar
no que fazia. Havia sempre o medo de ser pego, embora fosse difícil alguém ir
até o cemitério àquela hora.
Pegou o saco de ossos e os
despejou no caixão. Não fez questão de posicioná-los corretamente, já que era
ele mesmo que o abriria num futuro não tão próximo. Fechou-o e começou a encher
de terra a cova. Terminou já no início da noite. Pegou o menino no colo e o
levou até a caminhonete do cemitério. Era uma lata velha, porém funcionava sem
problemas, os carros antigos funcionavam melhor que os novos, sem dúvidas. Eram
veículos feitos para durar. Colocou o corpo morto na caçamba, cobriu-o com uma
lona, ajeitou bem para não correr o risco dela sair durante o trajeto.
Alguns minutos depois já estava
saindo do perímetro urbano da cidade, ia em direção ao leste, por uma pequena
estrada vicinal que levava até um distrito rural. Ligou o rádio para deixar o
ambiente menos tenso. Era a hora das notícias locais dadas pela rádio local.
Entre elas havia a informação da morte da criança que estava na caçamba, a
notícia dizia que ele estava enterrado no cemitério municipal, não mais pensou
Adriano. Agora ele estava rumo às colinas.
A estrada ficou íngreme. A
caminhonete ia rápida pela estrada estreita, os faróis amarelados iluminavam a
pista abandonada. Algumas casas cobriam os cantos da estrada, porém a maior
parte era coberta pela mata de São Tomás. Uma curva leve à esquerda indicava o
fim do caminho, pelo menos para o menino morto. Na curva havia uma pequena
saída à direita que levava para uma casa relativamente grande. Era uma casa
velha, com aspecto de abandonada, porém algumas luzes estavam acesas. Adriano
parou o veículo bem em frente da porta de entrada. Mal desligou o veículo e a
porta se abriu.
- Já não era sem tempo senhor
coveiro – disse a mulher saindo pela porta. Vestia um vestido longo preto,
andava um pouco curvada, os cabelos brancos estava desalinhados, seus olhos
eram vidrados, tinham um brilho esquisito.
- Desculpe, é que os familiares
demoraram a ir embora – disse o coveiro se dirigindo para a traseira da
caminhonete – tive que enterrar e desenterrar este aqui – finalizou abrindo a
caçamba.
- Tudo bem, sem conversa, mais
ação – disse a mulher impaciente – traga logo para dentro – ela já foi entrando
na casa novamente.
Adriano pegou o cadáver no
colo, jogou-o por cima do ombro direito e foi caminhando até a casa. Aquela
parte era a pior para ele, tinha medo daquela mulher, voz de jovem, corpo de
velha. O coveiro entrou na casa. Parou logo após, estava numa sala de médio
porte, havia uma lareira, os sofás eram antigos e todos empoeirados, como se
ali ninguém se sentasse há anos, algumas mesas de canto finalizavam a modesta
decoração. A senhora estava no cômodo adjacente, era uma cozinha.
- Venha senhor coveiro, coloque
o menino na mesa – disse a senhora olhando para ele. Adriano colocou com o
maior cuidado possível o cadáver sobre a mesa. A cozinha era encardida, tinha
azulejos por todas as paredes, porém já estavam amarelados, assim também o
balcão da pia. A geladeira era muito antiga, pequena, com as pontas
arredondadas, porém robusta, devia pesar bastante.
A velha, com voz de jovem, foi
até o menino morto e o examinou.
- Excelente senhor coveiro, os
jovens são os melhores – disse dando um pequeno riso, seus dentes podres
ficaram à mostra, tinha apenas quatro.
- Pois é, agora a senhora pode
me pagar, tenho outras coisas para fazer – disse Adriano, queria sair dali o
mais depressa possível.
- Claro, claro – disse ela
tirando um pequeno maço de dinheiro do busto flácido – o senhor tem assuntos
para tratar no bar do Seu Joaquim, não é!?
- Tenho mesmo – disse Adriano,
não escondia de ninguém que precisava beber às vezes. Ela estendeu a mão com o
dinheiro, quando ele foi pegar ela contraiu o braço, fazendo com que ele
perdesse o equilíbrio e fosse para bem próximo dela. Ela o agarrou pelo queixo
com a outra mão.
- Escute aqui senhor coveiro –
disse ela com o rosto bem próximo ao dele, seu hálito fedia – o senhor não deve
contar a ninguém sobre isso, o senhor sabe que pode nos trazer problemas. Se me
pegarem o levo junto para o inferno – Adriano sabia que ela não brincava, algo
em sua voz e em seus olhos o fazia acreditar em cada sílaba, aquela mulher
parecia ter um contato direto com o diabo.
O coveiro apenas balançou a
cabeça concordando. O suor brotava de sua testa como água da bica. Seu corpo
estava paralisado, aquela velha tinha uma força inacreditável. Em seguida ela o
empurrou e jogou o maço de dinheiro para ele.
- Agora saia, vá! – ela se
debruçou sobre o cadáver do menino – e me traga outro quando tiver.
O coveiro se apressou, saiu da
casa e entrou na caminhonete. Procurou as chaves, não estava no contato, nem em
seus bolsos, devia ter deixado cair lá dentro da casa. Olhou para a porta ainda
aberta, pela qual havia saído da residência da mulher. Seu coração se apertou,
tinha medo, medo de entrar e não poder mais sair. Medo do que aquela mulher
iria fazer com aquele cadáver. Mas tinha que entrar, não podia deixar o veículo
do cemitério ali, traria suspeitas para a mulher e para ele.
Foi novamente até a casa.
Andava a passos lentos e temerosos. Esticou o pescoço para dentro da sala. Não
havia ninguém, estava exatamente do mesmo jeito que antes. Andou pelo assoalho
velho, buscou com os olhos alucinados pela chave, não a encontrou ali. Tinha
que ir para a cozinha. Caminhando, ainda temeroso, chegou à soleira que
separava ambos os ambientes e a cena que viu lhe deu a certeza de que deveria
ter abandonado o veículo ali.
A mulher estava em pé, ao lado
da mesa, tinha o rosto feliz, os dentes podres à vista, olhos mais brilhantes do
que nunca. Na sua frente, sentado sobre a mesa, estava o cadáver do menino. A
princípio o coveiro pensou que a mulher tinha colocado o corpo daquele jeito,
porém rapidamente percebeu que ela não o segurava em nenhum lugar. Um gemido,
parecia mais com um gato no cio, saiu da garganta do coveiro. A mulher o
encarou com raiva, seus olhos fuzilando o intruso. Porém o que fez Adriano sair
correndo pela porta, abandonando o veículo do cemitério na frente da casa da
mulher, correr por mais de uma hora sem olhar para trás, esquecer-se de ir até
o bar de Seu Joaquim, entrar em seu cemitério e se trancar em seu quarto
pequeno, foi saber que os olhos daquele menino, antes cadáver, eram verdes.
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