- Bem
vindos ao “Comida Humana” – disse Cléber erguendo os braços como se fosse
abraçar alguém – no vídeo de hoje vamos fazer um torta de carne moída
excelente! – finalizou com um sorriso despretensioso.
A
câmera posicionada sobre o tripé filmava cada movimento que ocorria na cozinha
totalmente branca. Pelo visor era possível ver Cléber preparando o prato daquele
dia, uma torta de carne moída.
Cléber
fazia aqueles vídeos toda semana, porém ao contrário do que qualquer um
imaginaria se soubesse disso, ele não postava nenhum vídeo. Todos os vídeos
feitos permaneciam no HD de seu computador, intocados, sem edição, sem
comentários, sem curtidas, sem conhecimento do mundo. Mas Cléber não se
importava com isso, na verdade ele nunca gravara um vídeo para mostrar ao
mundo, eles serviam apenas para sua diversão.
-
Primeiro vamos fazer a massa, lembrando que todas as medidas dos ingredientes
estão na descrição do vídeo – Cléber pegou o liquidificador e foi colocando os
ingredientes – pode colocar todos de uma vez: o leite, óleo, ovos, farinha de
trigo, fermento e um salzinho para dar gosto. Agora é só bater tudo e esperar
dar o ponto que a gente quer. Eu vou mostrar – ligou o aparelho, seu barulho
encheu o ambiente, naquele momento uma música pesada tocaria, pensou Cléber no
caso de uma edição.
Cléber
era um rapaz solitário, alguns diriam que era esquisito. Sua vida se resumia ao
trabalho e a sua casa. Era bancário, solteiro, não possuía animais de estimação.
Os vizinhos diriam, se alguém perguntasse, que era uma pessoa tranquila, que
nunca deu problemas. Ele realmente não gostava de atenção, preferia ficar
anônimo.
-
Agora vamos para o recheio – continuou em seu vídeo -, é importante comprar uma
carne de boa qualidade. A que tenho aqui é de excelente qualidade, talvez a
melhor possível de se encontrar em minha cidade. Peça para o açougueiro moer
duas vezes, pode parecer besteira, mas faz diferença. Como tenho moedor em
casa, eu mesmo moí.
Quando
Cléber encontrava algum conhecido pelas ruas tranquilas de São Tomás apenas
acenava com a cabeça. Dificilmente falava algo, menos ainda parava para trocar
qualquer sílaba que seja, nem mesmo um “oi”. A sua vida toda foi assim. No
colégio sofreu um pouco com as gozações dos colegas, mas por sempre ser quieto
o pessoal acha que ele não ligava, portanto sempre o deixavam em paz, porque
era chato tirar sarro de alguém que não liga.
- É
só fritar sua carne, como você sempre faz. Vamos colocando os temperos, aí é
com você, depende do seu gosto. Eu não gosto de muitos temperos, gosto mesmo é
do sabor da carne, até comeria ela cru – deu um sorriso descontraído para as
lentes da câmara – mas aqui vou dar uma temperada.
Quando
completou vinte anos foi morar sozinho. Sentiu-se livre, mas sua vida pouco
mudou. Continuou tímido, solitário, sem muito contato com o mundo, a não ser
por conversas com pessoas sem rostos, sem voz, sem identificação que mantinha
por meio da internet. O trabalho era tranquilo, na verdade até bobo para sua
inteligência, era o que pensava. Lá também não fez amigos. Sabia que o achavam
esquisitão, com certeza davam risada dele quando dava as costas.
-
Depois de fritar a carne, coloque metade da massa numa assadeira já untada com
manteiga e farinha de trigo. Depois coloque o recheio e o resto da massa por
cima – disse realizando os procedimentos – aí é só levar ao forno por
aproximadamente 40 minutos e pronto. Está pronta sua torta de carne moída! Já
volto para mostrar como a minha ficou.
Cléber
adorava quando chegava o final de semana. Tinha um hobby que o deixava ansioso
a semana toda: caçar. Ao redor de São Tomás, subindo por suas colinas, havia
mata densa, com alguns animais que circulavam por entre as árvores, porém a presa
que Cléber gostava de caçar circulava pelas ruas da cidade.
Sua
primeira vez foi num ataque de pânico, quando pensou que sua vida chegara ao
fim. Voltando do trabalho a pé, já que morava apenas alguns minutos do banco em
que exercia suas funções, uns garotos jogavam futebol na rua, como é muito comum
no interior. Cléber passou por eles, a cabeça baixa, os olhos mirando a poucos
centímetros a frente de seus passos, quando algo fez com que sua cabeça
abaixasse ainda mais, uma bolada, uma bolada bem no meio da nuca. Aquilo fez o
sangue de Cléber ir para as maçãs do rosto. Virou o rosto vermelho, a expressão
carrancuda. Os garotos caçoavam, o sangue subiu ainda mais. Nenhum deles pediu
desculpa. Cléber os encarou, era a primeira vez em sua vida que fazia isso, mas
não conseguiu intimidar ninguém, os garotos continuaram o seu jogo.
Cléber
tomou o caminho de casa, mas sua cabeça remoía aquilo. Não conseguia se livrar
da raiva que o dominou naquele momento. A raiva deu espaço ao ódio. Seu coração
acelerou antes mesmo de sua mente perceber a ideia que brotava. Quando tomou
consciência do que pensava sentiu as pernas bambas, o sangue gelado, a barriga
fria. Seu corpo se movia sozinho. Voltou para onde os moleques jogavam.
Ficou
a espreita, colado em uma árvore. A noite vinha chegando. As luzes dos postes
se acenderam. Ele ficou parado com a sensação de que segurava a respiração. Os
meninos jogaram mais um pouco e finalizaram a partida. Cada um foi para um
lado. Uns moravam ali mesmo naquela rua, mas outros foram tomando caminhos
diferentes. Até que um deles passou por Cléber.
Cléber
foi seguindo o menino. A princípio de longe, porém com o passar dos minutos,
acelerou o passo até estar bem atrás do jovem ser humano. O garoto deve ter
percebido quando Cléber se aproximou demais, olhou para trás, mas não teve
tempo de evitar o soco que o acertou bem no queixo, seu corpo ficou pesado, as
pernas dobraram e a cabeça bateu com força na calçada de cimento.
Cléber
olhou assustado para os arredores. Ninguém tinha presenciado a cena. Isso era
comum no interior. Escurecia e as pessoas já abandonavam as ruas. Estava apenas
a um quarteirão de sua casa. Sem pensar mais, pegou o menino no colo e saiu
correndo em busca de seu refúgio. Quando finalmente conseguiu entrar em sua
casa, relaxou. Colocou o menino no chão da cozinha e foi pegar um copo de água.
Após beber se virou.
O
menino estava em pé, olhava para Cléber com os olhos assustados, devia ter 8
anos de idade. “Onde eu to?” perguntou com medo, “quem é você?” emendou. Cléber
apenas o olhava, não tinha resposta. “Você me roubou?” perguntou o menino de
novo, agora com mais medo ainda por tal ideia, “vou contar para minha mãe!”,
seus olhos começaram a marejar. A cabeça de Cléber era um turbilhão de
pensamentos, o que poderia fazer? Tinha dado um passo que não permitia volta.
Se soltasse o menino ele contaria para alguém. Novamente suas pernas
amoleceram.
O
menino, que chorava copiosamente, ameaçou sair correndo pela porta da cozinha,
porém ela estava trancada. Ficou tentando abrir a maçaneta, mas não conseguiu.
Cléber foi até ele, havia decidido o que fazer. O menino virou o rosto
percebendo a aproximação do homem, seu rosto estava molhado pelas lágrimas,
seus pequenos olhos brilhantes demonstram o terror que sentia. Mais um soco,
menos força, a visão escureceu. O menino caiu no chão, porém na queda havia
batido a cabeça na quina do armário. Lentamente um fio de sangue escorreu pelo
piso branco. O contraste deixava o sangue mais vermelho ainda.
Cléber
se abaixou para carregar o garoto. Deixá-lo-ia num campinho de futebol que
havia no bairro, lá ele acordaria e correria para casa, ou alguém o encontraria
desmaiado e chamaria a ambulância. Nunca ele contaria sobre algo, e mesmo se
contasse, não sabia quem ele era. Porém quando o pegou no colo sentiu algo
diferente. O corpo parecia mais pesado, mais mole, mais inerte do que de
costume. Checou o pulso, não havia batimento cardíaco. O desespero o tomou,
havia dado mais um passo sem volta, talvez um pulo sem volta. Havia matado o
menino. Jogou o corpo no chão e correu para o banheiro. Fechou a porta e
deslizou por ela até se sentar no chão, chorava, seu coração doía, sua garganta
queria gritar, mas nada saía.
Deve
ter adormecido ali, em meio a lagrimas e desespero, pois quando tomou
consciência novamente já passava da meia noite. Ficou com medo de sair do
banheiro, talvez aquilo tivesse sido um sonho, mas não queria confirmar que não
era. Esperou mais alguns minutos. Foi até a cozinha. No chão frio jazia o corpo
pequeno do garoto. Exatamente do mesmo jeito que estava quando Cléber saiu correndo
dali. Pegou-o, a cabeça não sangrava mais, todo o sangue estava no chão branco.
Colocou o corpo morto sobre a mesa e sentou em uma cadeira. Observava-o, ao
mesmo tempo em que queria pensar no que fazer, sua mente divagava,
arrependia-se por tudo.
Uma
coisa era certa: não permitiria que descobrissem aquilo. Mas como iria se
desfazer daquele corpo? Pensou em queimá-lo na churrasqueira, porém não
conseguiria transformá-lo em pó. Pensou em comprar algum ácido para derretê-lo,
assim como faziam nos filmes, mas onde conseguiria comprar isso? Talvez esquarteja-lo
e dividir as partes pela cidade? Em pequenas quantidades seria fácil o
transporte. Era isso, iria dividir o corpo do menino em partes e assim dar um
fim a tudo.
Pegou
sua melhor faca, afiou na pedra de amolar e começou o trabalho. Percebeu que
deveria cortar onde os ossos se uniam, na cartilagem, era mais mole e fácil
assim. A sua mente realmente era poderosa. Aquilo era abjeto, terrível,
nojento. Pessoas comuns sentiram náuseas, não conseguiriam. Porém ele
conseguia, no início era realmente difícil ver a faca entrando na pele, cortando
músculo, carne e tendão, o sangue vertendo de cada corte. Mas paulatinamente
foi se acostumando com a ideia, até mesmo um fundo de satisfação quando o corte
saía perfeito foi tomando conta de suas emoções.
Passou
a madrugada ali. O sol já deixava o horizonte azulado quando considerou o
trabalho terminado. A mesa estava totalmente vermelha. Ao lado um saco preto de
lixo continha as vísceras daquele garoto. Eviscerar havia sido o momento mais
angustiante para Cléber. O cheiro era horrível. Pegou alguns sacos e foi
dividindo os pedaços entre eles. Iria coloca-los na geladeira, para não
apodrecerem, e na próxima madrugada sairia pela cidade espalhando os pedaços.
Quando colocou o último pedaço em um dos sacos, fechou-o e se encaminhou para a
geladeira. Seus braços estavam grudentos com o sangue seco neles. Sem perceber
levou um dos dedos a boca e chupou o sangue que ali havia.
Parou
de caminhar. Sua mente o fez perceber o que havia feito. Aquilo que carregava e
que estava nos seus braços e mãos não era carne bovina, era carne humana,
sangue humano, e ele havia provado. O pior, ele nem mesmo sentiu seu estomago
embrulhar, ao contrário, sentiu-o roncar. Olhou para o saco que carregava. Mais
uma vez seu coração palpitou, mas dessa vez Cléber não fez nenhum esforço para
se controlar. Soltou o saco no chão, abriu-o. Ali estava um pedaço do corpo do
menino, mais precisamente a coxa da perda esquerda. Com as duas mãos Cléber
puxou o pedaço e de imediato abocanhou. Seus dentes perfuraram a pele rançosa,
sentiram a resistência do músculo. Ele mudou a posição, mordeu novamente, o
sangue restante escorria pelo seu queixo. Finalmente conseguiu arrancar um
pedaço. Mastigou satisfeito, como se aquilo fosse sua comida preferida. A
partir daquele momento realmente era.
-
Então pessoal, 40 minutinhos depois está aqui minha maravilhosa torta de carne
moída. Vamos experimentar!? – cortou um pedaço retangular da torta e colocou
num pequeno prato. O garfo rompeu a massa crocante por cima. Comeu – olha, está
uma delícia. Realmente muito bom – sorriu – o segredo é a carne e esta que
estou usando é da melhor qualidade, você encontra por aí facilmente, caminhando
pela sua rua – finalizou dando uma gargalhada que fez eco na cozinha.
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